Crime passional : casal assassina fêmea a sangue frio





Tenho um casal de periquitos numa gaiola e todos os dias me delicio durante uns minutos a observar as manifestações de cuidado que dispensam um ao outro, a meticulosa arrumação das penas, ou aquele adormecer juntinhos próximo da noite. Olhando para eles percebe-se logo que tempo vai fazer. Quando chega a chuva, enrolam-se sobre si, ficam cabisbaixos, dormentes. Se o sol brilha piam logo pela manhã. Eram três. Mas o casal eliminou a segunda fêmea. A sangue-frio. Estava estirada no chão da gaiola, uma manhã, quando cheguei para o pequeno almoço. Hirta, as penas em desalinho, o bico semi-aberto. Percebia-se que as bicadas tinham ido certeiras ao pescoço. O mar de penas verde e brancas que o vento soprado da janela empurrara pelo chão da cozinha ao longo da noite dizia tudo. Culpados. De facto a pássara era uma provocadora irritante e não querendo tomar partido tenho que afirmá-lo: aquela fêmea era incorrigível e estava mesmo a pedir uma lição. Apanhou com o curso todo de uma vez só. Pimba! Três era uma multidão. Pode parecer-vos estranho, mas para quem observa periquitos há um quarto de século, parece-me certo afirmar que estes pássaros têm uma personalidade própria, têm atitude. Aquilo foi um crime passional. 

Tive uma periquita de olhos vermelhos. Imaginem um passaroco, uma magricela de nem 10 cm a crescer para mim do seu poleiro, dir-se-ia em bicos de pés, peito proeminente, asas afastadas do corpo, um pio rouco mas estridente, e sobretudo furioso, entrecortado de arremessos do seu bico em direcção à minha mão. Nenhum medo. Pensava que me podia fazer frente. E eu deixei-a ver que sim. Tentava acercar-me dos filhotes, lindíssimos, já de plumagem perfeita. (Sim, porque quando saiem do ovo os pequenitos são uns cabeçudos feiosos, só bico e olhos, o milho vê-se à transparência pela pele rosada do seu papo! Feiosos mas que belo o milagre bem sucedido da vida assente um duas patitas com dedos desproporcionados.) Deixei as crias em paz e fiquei a olhá-las de longe. A periquita convencera-me. E convencera-se. Das vezes seguintes pude colocar-lhe a água sem alaridos de maior. Apenas se mantinha a posição ameaçadora, de guarda. Se nunca agarraram um pequeno pássaro não devem saber como o seu coração dispara na nossa mão. O seu instinto deve fazê-los sentir intimamente: vou morrer, esta gaja vai comer-me vivo, com penas, ossos e tudo! Parecem aqueles bonecos de corda. Esgotada a energia o boneco pára. Também o coração do pássaro. 

Por vezes os pardais entram no meu prédio pelo telhado e tenho de os apanhar para devolver à rua pois aquilo é mesmo uma ratoeira, melhor uma “passareira”. Morreriam à fome ou de sede nas escadas. Por vezes vai de percorrer cinco andares de lanços de escada tentando fazer com que o pássaro vá fugindo à minha frente até alcançarmos a porta principal, no R/C, se me calha um tão um arisco que não consiga deitar-lhe a mão. Ainda miúda, em Braga, andei à bulha com um puto que tinha uma fabulosa fisga como nunca mais vi nenhuma. Madeira, elástico, e napa. Eu vinha da escola. Andavam, ele e o amiguito, a fisgar os pardais. Eu acho que não queria que ele fizesse pontaria aos pardais, mas acho que também queria a fisga para mim! Possivelmente para lhes fazer pontaria a eles! Cheguei a casa em mau estado, sem a fisga, e eles devem ter continuado a fisgar os pardais. 

Nunca dei nome às minhas aves. Nunca lhes tentei ensinar acrobacias nem palavras patetas. Esforço-me por lhes poupar uma intromissão maior que a minha observação. Sempre gostei de animais. Nesses tempos longínquos da escola primária eu queria ser veterinária. E a minha melhor amiguita da escola, também. Ela tornou-se educadora de infância e eu, bem, eu continuo à procura da minha real vocação.

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