Sinéad O'Connor, Klimt, ou a arte como tradução do amor



Sinéad O'Connor & Shane MacGowan


"I wanna be haunted by the ghost of your precious love". É um dueto inesquecível que conjuga a fragilidade sibilante da voz da Sinnead O’Connor com a rouquidão rude do vocalista dos Pogues. Descobri ontem este CD no meio das centenas que possuo. Arrumar tem destas coisas. Nem sabia mais que o tinha! E agora a música não me sai da cabeça. Encontrei também uma caixa cheia de agendas velhas. Tão velhas que nem sei porque as guardo assim, gastas, cheias de anotações e papéis agrafados. Muitas delas são da Tashen e vivem da inspiração da obra desse extraordinário artista que foi Gustav Klimt. Agendas são compra comum nesta altura do ano. O que não é comum é que ano após ano eu compre uma agenda sempre igual. Este ano vou tentar ser diferente de mim própria. Sou como aquelas pessoas que na gelataria pedem sempre morango e chocolate: até poderiam descobrir sabores muito do seu agrado se transgredissem na sua preferência de vez em quando. Mas não: ouço-as dizer morango e antes de eu conseguir contar até 3 dizem chocolate! Mais do mesmo pode ser garantia de prazer certo, mas dum prazer que é negação da descoberta com tudo o que ela encerra. 

Uma vez vi na Casa Rádio, conhecida livraria e papelaria da Figueira da Foz, um cesto cheio de agendas em saldo. Eram do ano transacto! Alguém as compraria?! Uma agenda de Klimt é mais do que uma agenda. Acompanha-me em cada dia e quando estou desinspirada, exausta ou confusa não é raro perder-me a folhear as suas páginas aí encontrando transporte para o universo do amor, da beleza e da arte que me fazem alhear do momento de crise e me ajudam a respirar fundo. Ante as emoções que me proporciona a contemplação dessas reproduções é difícil aceitar que em finais do séc. XIX o reconhecimento da obra do pintor fosse tudo menos unânime. Muita gente apenas desejava mais do mesmo, dir-se-ia morango e chocolate. 

Por acaso tenho uma colecção de várias agendas, agendas que fogem ao comum e que vou comprando um pouco tontamente. Tontamente porque não as uso. Um pequeno stock. Tenho uma agenda dos Cahiers du cinema, outra da Tate Gallery, outra, UMA AGENDA LITERÁRIA que cita autores portugueses em cada dia e que tem ilustrações do Jorge Colombo…Agendas não são livros, pois não?!!Ou são?!! Tenho uma agenda que a CINEMATECA PORTUGUESA editou. A capa é preta e traz uma imagem do filme Há lodo no cais, de Elia Kazan, com Eva Marie Saint e Marlon Brando. Uma vez aberta uns lábios vermelhos abrem-se deixando ler dentro a frase “Kiss me, stupid”. Daí para a frente os meses e os dias do calendário sucedem-se entremeados de fotografias extraídas de filmes, na sua maioria dos clássicos do cinema americano, a antecâmera do beijo, a cena do beijo ou o take seguinte da rendição amorosa, sempre a preto e branco, sucedem-se. É ridiculamente ternurenta. Uma das fotografias que mais me agrada refere-se ao filme Sunrise, de F.W. Murnau, de 1927, um filme que não vi, ainda! O casal está enlaçado num beijo, não percebemos os rostos. Ela usa chapéu e um vestido longo. Parecem ter-se encontrado em plena rua e terem feito parar o trânsito. Um homem espreita, metade do corpo fora dum veículo, lábios entreabertos como que a dizer: “Hey, folks! Cut it out! Get of the way!” Comprei essa agenda a pensar oferecê-la a um homem particular mas depois não lha dei. Ahahah! Possivelmente ele não a usaria por muito que goste de cinema. Nem eu a utilizei senão para deleite visual. Como cinéfila inveterada que sou, vi quase todos aqueles filmes e cada fotografia chamava por alguns queridos fotogramas dispersos na minha memória. Imagens do cinema, da pintura, fotografia, palavras de poetas enchem estas agendas que, de certa forma, colecciono. 

Os artistas viveram e vivem emersos nas suas imagens, nos seus poemas, na sua música sobre o amor, criando, partilhando, expondo-se. Namoro com a vida feito arte. Arriscando, como Klimt, o julgamento do público. Em público. Enquanto nós nos ficamos com os nossos dois sabores, morango e chocolate, tolhemo-nos até de dizer amo-te com todas as letras àqueles a quem queremos, nas ocasiões e vezes certas. Entre nós, turistas acidentais do amor, quanto se perdeu do lirismo, quanto do romance evanesceu das palavras e dos gestos na vertigem diária da existência. Delegámos nos artistas a nossa voz…A voz da Sinnead ficou a cantarolar na minha cabeça: “Quero ser assombrada pelo fantasma do teu precioso amor.” É bonita como a pintura de Klimt esta frase. Haja ainda quem nos dê umas pistas de como traduzir o que sentimos em lindas assombrações verbais e visuais nas agendas da nossa vida.

Site sobre a vida e obra de Gustav Klimt (1862-1918)













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