A televisão criou um antropozoo e nós compramos bilhete


Valoriza-te, que os os outros se encarregarão de fazer baixar o teu valor”

Fui com o meu sobrinho ver os peixes na loja de animais. Uma das paredes é uma quase vídeo wall feita de muitos aquários onde peixinhos coloridos de vários formatos e cores se agitam de um lado para o outro. Noutras caixas engradadas arrumam-se cães, gatinhos e hamsters. Há papéis distraidamente colados com mensagens que chamam a atenção dos visitantes para deixarem os animais sossegados. Ver sem tocar é, em alguns casos, uma tentação difícil de contornar. Mas tocar é, em muitas situações, molestar. A barreira é ténue. Andámos durante muitos anos a remexer demais na Natureza. Para a nossa espécie, a expressão da superioridade passou rapidamente pela da aniquilação, que provou ser uma vocação tão forte quanto sobreviver. Portanto ver sem tocar devia ser a regra. Sobretudo porque a Natureza tem regras que nós não soubemos, não pudemos ou não quisemos seguir. E por fim, quebrámos também as nossas próprias regras ao permitir um ver que não preserva, antes avilta, um ver sem tocar num formato tal que nos inferioriza na nossa dignidade, que nos molesta, que nos remexe na mais íntima natureza. A cotação da nossa esfera privada enquanto homens e mulheres entrou em baixa galopante, o mesmo é dizer o nosso quoficiente já não sei se emocional se intelectual, se ambos. A preços ridículos pessoas aceitaram a presença das câmaras num seu quotidiano, é certo que encenado e anti-natural, transmitido para o país via TV. O trunfo disso seria supostamente o de conhecermos a vida real em directo, e, quem sabe não seria interessante se daí se extraísse alguma lição. Mas eis a minha leitura da experiência: meia dúzia de humanos, meia dúzia de salas, meia dúzia de acrobacias, um prémio - eis um modelo de "antropozoo" de sucesso. Nunca homens e animais se equipararam tanto na sua miséria. O consentimento numa folha de papel tudo legitima e apazigua: a TV propõe, o concorrente assina por baixo, os espectadores legitimam. Para mim, enquanto não aprendermos a desligar o botão do aquário colorido estamos a subscrever todos a delapidação e o enfraquecimento de vários direitos, que são de todos nós, que foram conquistados e que quisemos salvaguardar constitucionalmente, o direito à imagem e o direito à reserva da intimidade da vida privada, por exemplo. Esta é a ordem televisiva dos nossos dias. O Grande Irmão não nos vigia, ele comanda-nos através do seu olho rectangular. Penso que foi Tchekov quem escreveu: “Valoriza-te, que os os outros se encarregarão de fazer baixar o teu valor”.Nada questionamos, nada pomos em causa. Baixamos todos os dias o nosso valor. Por acção ou omissão. Anseio pela extinção dessa espécie, mas concurso após concurso, programa após programa, umas vezes veladamente, outras de forma descarada, ela fortalece-se. Arruinado o mundo das outras criaturas ou saturados do seu conhecimento voltámo-nos para a devassa do nosso mundo privado, em busca de divertimento. Estamos a um passo de legitimarmos a videowall do dono do prédio daquele filme com a Sharon Stone, Violação de privacidade. Por enquanto, eu e o meu sobrinho vamos olhando os pequenos peixes coloridos na parede de aquários da loja de animais. Oxalá o futuro lhe traga uma nova era televisiva que não faça dos homens macacos e das suas casas, zoos.


Comentários

Prismatico disse…
ya me vi, ya me vi, muchas gracias!! soy Internacional, gracias a ti!!! tu tmb estas aqui ya!! velo por ti misma!!
Prismatico disse…
hay que leer y crear, la tv hay que dejarla fuera aunque sea adictiva.
http://prismaticov2.blogspot.com/