Aula de reciclagem: reutilizar, reusar, reciclar




O meu vizinho da frente, bom, eu nunca estive muito próxima dele. É da frente, mas não do apartamento em frente. Não sei mesmo se ao passarmos ombro pelo ombro na rua principal o reconheceria. Se estiver junto a mim no balcão dos queijos será como se comesse muito quijo, não terei memória dele, e se estiver sentado na mesa contígua à minha a tomar café, não passará de um estranho que bebe um pensativo café ou fuma um sonhador cigarro. Vive no bloco oposto ao meu, no rés-do-chão. É um homem corpulento e vozeiro, de cabelos escuros. Nunca me fixei muito bem no rosto dele, não sei descrevê-lo. Vejo mal ao longe graças à minha miopia de longa data, com e sem óculos, da minha varanda o que percebo é um homem que gosta de reunir a família e os amigos em volta dos seus petiscos na brasa. Semana sim, semana não, lá está a mesa de plástico branco montada no cimento frente à sua varanda, ali mesmo onde os outros carros e os dele se estacionam; e um chapéu-de-sol aberto sobre ela, se por acaso há sol. Por vezes música popularucha acompanha a cena transformando-a num misto de S.João e festa de garagem. Rapidamente as cadeiras também de plástico branco enchem-se. São as filhas e a redonda mulher, mais meia dúzia de outras pessoas que chegam nos seus automóveis à hora combinada. Uma cadela de pelo curto de cor amarelada, atarracada, pata curta, mas cheia de energia habita também o rés-do-chão enchendo o ar da vizinhança com os seus latidos. É capaz de brincar com um garrafão de plástico durante toda uma refeição, correndo, mordendo, ladrando à cumplicidade das crianças na brincadeira e roendo a paciência de qualquer adulto mais ou menos vizinho. A comida é sempre bem regada e bem conversada. Termina tudo com uma rodada de fumo, de braços e perna cruzada, a gozar o sol de verão e por vezes até o de meio inverno. No final a mesa é levantada, fica apenas a toalha manchada de vinho e um ou dois copos ainda cheios para evitar que voe. As pessoas somem-se nos seus carros até à próxima vez.
Sei coisas interessantes sobre este homem que eu não saberia distinguir se se cruzasse comigo ombro com ombro no passeio. Sei que aos fins-de-semana costuma ir à pesca. Vi-lhe redes, camareiro, botas altas de borracha encostadas à varanda. Sei que percebe de mecânica pelos amigos que ali vêm e lhe depositam nas mãos a sua viatura, com o coração. As peças e as ferramentas espalham-se então pelo cimento. Mas também sei que leva Lavoisier muito a sério, pois com ele nada se perde na Natureza, tudo se transforma. Um dia alguém colocou uma máquina de lavar junto de um contentor de lixo não muito próximo. Ele foi buscá-la, e, de empurrão em empurrão, levou-a para o cimento junto à sua varanda. Retirou-lhe o tambor e foi devolvê-la ao seu lugar inicial, junto ao contentor verde. Ao final da tarde e depois de algumas secções cortadas e soldadura, ele ali estava: um novo e moderno assador. No dia seguinte, antes do meio-dia o objecto reciclado cumpria a sua função: um espeto soldado ao seu centro e enfiado num suporte de pedra, daqueles que servem de suporte aos chapéus de praia, mantinha-o em posição. Mais um pouco e o cheiro de sardinha assada já chegava à minha varanda. Engenhoso, o meu vizinho.
Um dia, nos princípios deste ano, os meus periquitos receberam uma casa nova. Ano novo, casa nova. A anterior gaiola tinha as grades todas descascadas e caíra no chão. O tabuleiro branco inferior partira-se e uma corda mantinha-o unido às grades. Era uma gaiola grande de mais, vinha do tempo em que tinha oito, doze bicos ruidosos ali dentro. Agora restava apenas um casal, um periquito muito velho, cinza escuro, com uma pinta branca na cabeça, e uma periquita amarelo-esverdeada. Depois de mudar os inquilinos para a casa nova sob o olhar atento do meu sobrinho, a velha gaiola foi para junto do contentor do lixo, ainda semi-atada. Retirei-lhe alguns dos melhores poleiros, que guardei juntamente com os comedouros. Para quê não sei, mas "Deita fora o que tens, a pedir vens", já dizia a minha avó. Eis que no dia seguinte me chego por mero acaso à varanda das traseiras. O meu vizinho aprontava uns poleiros para uma gaiola. No chão uma gaiola pequena ao lado de uma com quase o dobro do tamanho e de grades descascadas, a gaiola que eu tinha deixado junto ao contentor, reconheci depois de apurar a vista! Mas o tabuleiro tinha sido colado e funcionava agora perfeitamente. Mesmo assim ele passou uma guita em volta deste e da gaiola propriamente dita, ao centro, prevenindo, com nós cuidadosos, uma eventual queda daquele, o que levaria à fuga certa do passarito, o novo inquilino daquele espaçoso condomínio. Uma taça com água, uma taça com comida. E vai de subir para cima de um banco e de pendurar o conjunto na parede. Depois, em passos determinados, uma corrida até ao contentor com a pequena e roída gaiola que estava no chão. Junta as ferramentas, um canivete e pouco mais, lava as mãos e casa com ele. E, para mim, tinha acabado mais uma aula de reciclagem.


Comentários

muito bom, valeu...